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  • Foto do escritorFernanda Carpegiani

CATADORES | Essenciais para a economia e o meio ambiente

Trabalhadores que prestam o serviço de coleta de materiais recicláveis são muitas vezes explorados por atravessadores e atuam, em associações e cooperativas, para que instrumentos legais melhorem suas condições de vida


“Saí indisposta, com vontade de deitar. Mas, o pobre não repousa. Não tem o previlegio de gosar descanço. Eu estava nervosa interiormente, ia maldizendo a sorte. Catei dois sacos de papel. Depois retornei, catei uns ferros, uma latas, e lenha.”

Carolina Maria de Jesus em "Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada" (1960)


Uma das mais importantes escritoras brasileiras, e uma das primeiras autoras negras do país, a mineira Carolina Maria de Jesus (1914-1977) retirava do lixo seu sustento, os livros que lia para os três filhos e os cadernos nos quais escrevia seus relatos. No Brasil, realidades como a dela existem pelo menos desde o século 19. O trabalho de catadoras e catadores acompanhou a urbanização das cidades, e pelas suas mãos passam 90% dos resíduos reciclados no país, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).


Em 2019, 36,8% do total de toneladas coletadas seletivamente foram encaminhadas por catadores formalizados, em parceria com o poder público. O dado faz parte do 18º Diagnóstico do Manejo de Resíduos Sólidos Urbanos do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), publicado pela Secretaria Nacional de Saneamento (SNS) do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR).


Segundo a publicação, existem 1.480 organizações de catadores no país, distribuídas por 994 municípios, com mais de 31,5 mil catadores vinculados a essas entidades. A relevância dessas associações e cooperativas só cresce: de 2018 para 2019, a participação das organizações de catadores na coleta seletiva aumentou 6 pontos percentuais, enquanto a contribuição das prefeituras diminuiu em 4 pontos percentuais.


Segundo a Associação Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (ANCAT), existem 46 mil catadores atuando em cooperativas e associações em todo o Brasil. A entidade estima que o trabalho dessas organizações pode ter recuperado pouco mais de 1 milhão de toneladas de resíduos sólidos em 2019.


A projeção considera um levantamento feito com 607 associações e cooperativas de catadores, que coletaram e comercializam quase 355 mil toneladas de materiais recicláveis em 2019. As informações integram a segunda edição do Anuário da Reciclagem, publicado em 2020 e produzido pela ANCAT em parceria com a Pragma Soluções Sustentáveis.




Brasil pode ter de 400 mil a 1 milhão de catadores


Nos últimos anos, foram realizados diferentes estudos e levantamentos sobre os catadores no Brasil. O IPEA estima que essa população varia de 400 a 600 mil, incluindo profissionais autônomos, formais e organizados, de acordo com análises de 2012 e 2013. Já o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis atualmente diz que são de 800 mil a 1 milhão.


Nenhum dos números está necessariamente errado, como explica o geógrafo Ricardo Dagnino, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Campus Litoral Norte). Especializado em análises demográficas espaciais, ele estuda o perfil dos catadores desde 2002. "O trabalho de coleta de resíduos é muito informal e responde a vários fatores externos, entre eles a sazonalidade", explica Dagnino. "A questão da pandemia, por exemplo, alterou bastante o cenário, inclusive no mercado formal. Por isso os números oscilam bastante."


Em 2017, Dagnino publicou um trabalho sobre as características demográficas e socioeconômicas dos coletores de material reciclável, com base no Censo Demográfico de 2010. Os dados mostraram que os catadores estão presentes em 89% dos municípios brasileiros, a maior parte na região Sudeste (42%) e Nordeste (30%). A idade média dessa população é de 39 anos, sendo 8% idosos, ou seja, com 60 anos ou mais, e 66,1% se autodeclaram pretos e pardos.


A análise sugere que a renda média do grupo em 2010 era R$ 561,93, muito inferior aos R$ 1.271,88 estimados para a população trabalhadora total no mesmo período. Dados mais recentes, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), mostram que a renda mensal de catadores informais foi de R$ 690 em 2018, quando a média nacional alcançava R$ 2.243.



Avanços legais não impedem dificuldades


A primeira conquista da categoria foi a inclusão da profissão de catador na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) em 2002. Com o reconhecimento da sua atividade econômica, passou a ser possível estudar e mensurar o trabalho dos catadores, que passaram a aparecer em estatísticas oficiais. Em 2003, foi criado o Comitê Interministerial para Inclusão Social e Econômica dos Catadores de Materiais Reutilizáveis e Recicláveis (CIISC), reestruturado em 2010 junto com a criação do Programa Pró-Catador, que promovia a inclusão socioeconômica dos catadores.


Também em 2010 foi aprovada a Lei 12.305, da Política Nacional de Resíduos Sólidos, que prevê uma série de ações de valorização dos catadores, entre elas a simplificação de contratos entre cooperativas e poder público. Pouco antes, em 2007, a Lei 11.445 de Saneamento Básico permitiu ao poder público contratar, sem licitação, cooperativas e associações de catadores nos serviços de coleta seletiva do município.


Esses marcos legais contribuíram para o reconhecimento dos catadores como agentes fundamentais na política de coleta seletiva, na avaliação do economista Sandro Pereira da Silva, pesquisador do Ipea e autor de um dos primeiros trabalhos sobre catadores no Brasil. Mas o cenário mudou nos últimos anos. "A partir de 2016, após o impeachment, essas estruturas foram banidas e os catadores perderam apoio institucional", avalia. "Hoje, praticamente não há política de apoio específica para essa categoria no plano federal, apenas em alguns casos no plano municipal."



Formas de atuação e organização de uma categoria diversificada


Em geral, os catadores se associam a cooperativas ou trabalham de forma autônoma, mas a categoria é bem diversificada, com formas de inserção diferentes, como explica o pesquisador Sandro Pereira da Silva. "Nas cooperativas, existe divisão do trabalho. Há catadores que ficam na coleta, na seleção de materiais dentro de um galpão, na comercialização. No caso do trabalho individual, geralmente são pessoas sem emprego ou em busca de renda extra que saem coletando nas ruas, nos lixos e lixões, ou em datas específicas, como festas."



Os catadores começaram a se organizar em 1999, com a criação do Movimento Nacional dos Catadores(as) de Materiais Recicláveis (MNCR) e do seu braço técnico, a Associação Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (ANCAT), em 2000. "A maioria dos catadores foi excluída de alguma forma da sociedade, porque são pobres, não têm trabalho", afirma o catador Alex Cardoso, membro da coordenação do MNCR e graduando em Ciências Sociais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. "O movimento ajuda na criação de identidade e na formação do sujeito, como ser humano e cidadão, para que ele possa se organizar e lutar pelos seus direitos."


A missão do movimento é "contribuir para a construção de sociedades justas e sustentáveis a partir da organização social e produtiva dos catadores de materiais recicláveis e suas famílias, orientados pelos princípios que norteiam sua luta (auto-gestão, ação direta, independência de classe, solidariedade de classe, democracia direta e apoio mútuo), estejam eles em lixões a céu aberto, nas ruas ou em processo de organização". Por isso, as ações são direcionadas tanto para os cooperados quanto para os autônomos.


O que vem garantindo avanços concretos para o grupo, segundo Cardoso, é a estruturação de cooperativas e entidades representativas. "Por mais que esteja na lei, se não tiver luta a situação não muda. E a luta é para melhorar a qualidade de vida, a inclusão de pessoas, geração de trabalho. Um avanço importante é a conquista de espaços de conhecimento, porque muitos catadores ocuparam as universidades, estão se formando e não saíram das cooperativas."


Em apoio ao MNCR, a ANCAT desenvolve atividades nas áreas de promoção social, geração de trabalho e renda, educação popular, capacitação profissional, meio ambiente e direitos humanos, além de fazer parcerias com o poder público e privado para iniciativas de fomento à economia solidária, gestão sustentável de resíduos sólidos e inclusão econômica dos catadores.


Uma das ações mais recentes é a Campanha de Solidariedade aos Catadores do Brasil, lançada em março de 2020, no início da pandemia de Covid-19. "Com o apoio de diversos parceiros, conseguimos atender os catadores e as catadoras com cartão-alimentação, cestas básicas e também equipamentos de proteção individual e coletiva para as cooperativas que estão retomando as atividades", diz o catador Anderson Nassif, técnico da ANCAT.



Desafios envolvem reconhecimento de gestores públicos


Atualmente, a principal reivindicação dos catadores é que seu trabalho seja reconhecido e valorizado – literalmente. "Qual é o valor que o gerador de resíduos dá para o trabalho dos catadores? É preciso pagar pelo serviço de coleta de materiais recicláveis. Todas as pessoas exploram os catadores quando não pagam por esse serviço", afirma o catador Alex Cardoso, do MNCR. Na prática, isso significa que a prestação desse serviço seja feita sempre por meio de contrato e pagamento.


Para o pesquisador Ricardo Dagnino, é preciso que a sociedade como um todo entenda que o catador é um comerciante. "Quando a gente tem esse olhar econômico, fica mais fácil desmistificar alguns detalhes da atividade. O catador não recicla, e sim presta um serviço de coleta de materiais recicláveis. E muitas vezes ele é explorado nesse processo por atravessadores, como donos de ferro-velho, que compram o produto a um preço baixo e o revendem para a indústria de reciclagem", explica.


Na visão do catador Anderson Nassif, um passo importante é que os gestores públicos reconheçam o trabalho dos catadores como essencial para o município, do ponto de vista ambiental, social e econômico. Existem diversos instrumentos legais que podem melhorar as condições de vida e de trabalho dos catadores, mas sua aplicação esbarra em problemas complexos e profundos. "Um dos obstáculos é a máfia do lixo, em que operam empresas de coleta de lixo, ferros-velhos e empresas de transporte público. Existe toda uma articulação que envolve financiamento de campanha, licitações direcionadas, questões que são conhecidas e sabidas há anos. A pergunta é: por que isso não muda?", questiona Dagnino.


 

* Coordenação editorial e edição de Sérgio Rizzo.

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